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ANTÍGONA DESTRÓI MURALHAS


(foto: Ziza Ferreira)

 

Roger Lerina

Da mesma maneira que o "Ricardo III" de Gustavo Gasparani, trazido em 2015 pelo Porto Alegre Em Cena, a montagem de "Antígona" na programação desta edição do festival também explora o despojamento, a concisão e a didática a fim de comunicar para o público a maior quantidade de informações possível a respeito de uma obra canônica e sua circunstância. O expediente utilizado por Gasparani para explicar as origens do imbróglio sucessório entre as linhagens reais inglesas, pano de fundo do drama histórico shakespeariano, é replicado nessa versão da tragédia de Sófocles: utilizando pouquíssimos objetos de cena, dispostos em uma bancada no canto do palco, Andrea Beltrão narra a desdita de Antígona tendo às costas uma série de varais onde estão pendurados cartazes com os nomes de figuras da mitologia grega – dos deuses Zeus e Hera à prole amaldiçoada de Édipo e Jocasta. Durante todo o espetáculo, a atriz vai recorrer a essa espécie de "power point genealógico" para esclarecer à plateia os eventos e as relações que levaram à ação da peça escrita em 441 a.C.: o confronto do personagem título com seu tio Creonte, rei de Tebas, que nega à sobrinha o direito de prestar os ritos fúnebres ao irmão Polinices, declarado por ele como traidor.

Nesse trabalho de desconstrução de um monumento da tragédia universal, o diretor Amir Haddad – responsável ao lado de Andrea também pela dramaturgia do espetáculo, a partir da tradução de Millôr Fernandes – tira partido da proximidade característica do teatro de rua, gênero ao qual o encenador vem dedicando boa parte dos 60 anos de sua carreira artística. Ao entrarem no Theatro São Pedro, os espectadores deparam com a intérprete já sentada no palco, cortinas abertas e luzes acesas – Andrea começa a falar e interagir antes mesmo do terceiro sinal. Iniciada a sessão, ela assume a condução solitária da narrativa, encarnando com entrega e talento um contador de histórias daqueles que leva as novidades de cidade em cidade – no caso, um tipo de rapsodo grego.

"Antígona" apoia-se no carisma da performer, que se desdobra em diversos personagens, pontuando com humor e ironia certas passagens do texto e estabelecendo conexões e diálogos do enredo com outras referências – caso do paralelo entre o mito da concepção divina de Dioniso, filho de Zeus com a mortal Sêmele, com a origem sagrada de Jesus e ainda das referências críticas à ancestral subserviência feminina. Primeiro solo de Andrea Beltrão, "Antígona" coroa dignamente a trajetória de 40 anos de trabalho de uma atriz que impressiona igualmente no teatro, no cinema e na televisão.

Porém, se por um lado a recuperação da linhagem da dinastia dos Labdácidas fornece dados preciosos para a compreensão da trama, por outro dispersa em certa medida a atenção ao tema próprio de "Antígona": a insurreição contra a regra institucional que despreza as tradições do povo e a vontade dos deuses. “Apenas o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém a sua força, porque mantém a sua medida humana”, escreveu Sófocles, em um recado que atravessa os séculos para perturbar os poderosos do nosso tempo. Advertência atemporal que é sublinhada ao final da peça original pelo coro – e que a atriz lembra na atual encenação postando-se em pé na beira do palco, olhar firme em direção à audiência: "Em mim só manda um rei: o que constrói pontes e destrói muralhas".

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