top of page

AQUARELA ENCARDIDA DO BRASIL


(foto: Edson Kumasaka)

 

Roger Lerina

Os textos literários de Chico Buarque são desafiadores para quem tenta adaptá-los a outras linguagens: a riqueza imaginativa e temática de suas narrativas, permeadas pelo borramento entre realidade e fantasia e pela fluidez entre passado, presente e futuro, não facilita a transposição para o palco ou a tela. Primeira versão para teatro de um romance buarquiano, a peça "Leite Derramado" logra sucesso nessa tradução cênica, conseguindo evocar uma alegoria delirante de 500 anos de espoliação do país, contada no livro por um protagonista representante da elite rapinante brasileira – cuja ação deletéria parece não ter saciedade, alimentando o dia a dia do noticiário nacional.

A montagem da companhia Club Noir leva a assinatura de uma dobradinha teatral de excelência, formada pelo diretor Roberto Alvim e pela atriz Juliana Galdino. Veterano do Porto Alegre Em Cena cuja passagem anterior no festival foi em 2015 com "Caesar – Como Construir um Império", Alvim criou em "Leite Derramado" uma ambientação cênica perfeita para o desfile de memórias, alucinações e invenções de Eulálio D'Assumpção, centenário e decadente herdeiro que agoniza em um hospital público. Quem encarna esse personagem fascinante e deplorável é a excepcional Juliana Galdino, cujo vigoroso talento dramático ganha o reforço da maquiagem e da caracterização para compor convincentemente a figura central.

A concisa concepção técnica, aliás, é um dos aspectos mais notáveis de "Leite Derramado" – é o caso da trilha sonora, que pontua o espetáculo com duas músicas antológicas: "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, no começo, e "Deus lhe Pague", do próprio Chico, no final. A cenografia econômica e icônica é valorizada pela iluminação virtuosística de Domingos Quintiliano, que proporciona o trânsito no palco entre diferentes cenas, épocas e estados de percepção – ecoando procedimentos similares de peças de Nelson Rodrigues, como "Vestido de Noiva" e "Valsa Nº 6".

Foi justamente um aspecto técnico, entretanto, que impediu a plena fruição da sessão de quinta-feira de "Leite Derramado": o microfone individual de Juliana Galdino deixou de funcionar logo no início, prejudicando a audição das falas da atriz para quem se encontrava nas fileiras do meio para trás do teatro. A prosódia peculiar do velho Eulálio, que alterna momentos quase balbuciantes com rascantes altercações praticamente gritadas, acabou sacrificando a compreensão de boa parte do texto pelo público, privado da amplificação da voz de Juliana, o que decerto clarifica o som.

bottom of page