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RINDO DO BANZO RUSSO


(foto: Juliana Alabarse)

 

Roger Lerina

Depois de ter participado da última edição do Porto Alegre Em Cena com o solo "Vaga Carne", Grace Passô voltou neste ano ao festival em dose dupla: assinando a dramturgia de "Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos" e atuando em "O Líquido Tátil". Um dos nomes mais celebrados da nova cena nacional, a atriz, diretora e dramaturga mineira esteve no palco do Teatro Carlos Carvalho ao lado de Gustavo Bones e Marcelo Castro no texto escrito e dirigido pelo argentino Daniel Veronese. "O Líquido Tátil" é a primeira montagem do Espanca! em que o elogiado grupo de Belo Horizonte não responde nem pelo texto, nem pela direção – a aproximação com Veronese nasceu em 2011 e incluiu uma imersão criativa de um mês da trupe em Buenos Aires. Já o ator, dramaturgo, diretor e bonequeiro portenho é um dos mais destacados nomes do teatro no continente, encenado no Brasil em produções como "Formas de Falar das Mães dos Mineiros Enquanto Esperam que Seus Filhos Saiam à Superfície", montada em 2016 na capital gaúcha, com direção de Breno Ketzer.

"O Líquido Tátil" comprova que a colaboração do Espanca! com Veronese não tem nada de fortuita: o espetáculo destaca o olhar enviesado e (quase) surreal que tanto a companhia mineira quanto o autor argentino lançam em seus trabalhos para o teatro realista – sem, no entanto, prescindi-lo por completo. Em um cenário despojado e mesmo pobre, que reproduz um canto de sala de uma residência, três personagens medem forças entre si em um curioso jogo de atração e repulsão. Nina, atriz reconhecida em épocas passadas, é casada com Peter, ator com quem mantém uma relação desgastada por mútua agressividade. A visita de Michael, irmão de Peter, acirra ainda mais os ânimos domésticos – especialmente quando Nina começa a seduzir o cunhado. Por sua vez, a relação entre os irmãos também apresenta atritos, como a discordância entre os dois quanto à suposta prevalência do teatro sobre o cinema – defendida ardorosamente por Peter e desdenhada por Michael.

Pairando sobre esse triângulo singular, está a figura de Anton Tchekov: o grande dramaturgo e escritor russo é lembrado tanto por referências a obras como "A Gaivota", "As Três Irmãs" e, em especial e mais diretamente, o genial conto "A Dama do Cachorrinho" quanto pela situação dramática que evoca seu universo ficcional – uma família da burguesia intelectualizada cujos laços desgastados mal sustentam as aparências, paralisada pela nostalgia de um tempo pretérito idealizado e à espera de um porvir redentor incerto. Essa pespectiva tchekoviana, entretanto, é ecoada sem idolatria: texto, direção e atuações acrescentam ironia, caos e perversidade ao banzo russo típico da obra do mestre – além de colocarem em pauta questões relativas à representação teatral, graças a diálogos de cunho metalinguístico. O resultado de "O Líquido Tátil" é um trabalho ao mesmo tempo divertido e reflexivo, capaz de aproximar a vida real contemporânea e a ficção encenada ao lembrar que ambas anseiam por encontrar alguma verdade que as redima de sua condição essencialmente precária.

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