top of page

AMÉM AO EVANGELHO


(foto: Cesar Lopes / PMPA)

 

Roger Lerina

Foram antecedidas por incerteza as apresentações de "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" no Porto Alegre Em Cena. Impedido pela justiça de ser apresentado em Jundiaí, no interior de São Paulo, o espetáculo em que a atriz travesti Renata Carvalho encarna Cristo recebeu um pedido de proibição judicial também na capital gaúcha, negado pela Justiça do Rio Grande do Sul sob a alegação de que "censurar arte é censurar pensamento, e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano". A decisão do juiz José Antônio Coitinho – que chegou a ser anulada, mas logo em seguida reabilitada – encerra-se com uma argumentação lapidar: "E, sem citar um único artigo de lei, vamos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturga transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: porque somos todos iguais".

Ainda assim, o temor de que manifestações de intolerância sexual e religiosa pudessem comprometer as sessões de quinta e sexta-feira levaram a Secretaria Municipal da Cultura e a Casa de Cultura Mario Quintana – devido à grande procura a peça foi transferida da Pinacoteca Ruben Berta para o Teatro Bruno Kiefer – a preparar um esquema especial na entrada do prédio, que incluía a presença de seguranças e a admissão apenas de pessoas portadoras de ingressos. No entanto, não houve protestos e as apresentações transcorreram felizmente sem sobressaltos. Sala lotada nas duas funções, "O Evangelho..." revelou enfim para o público porto-alegrense o motivo de tanta polêmica: o supostamente escandaloso texto da dramaturga transgênero escocesa Jo Clifford fala tão somente de tolerância, solidariedade e amor – conceitos fundamentais da cristandade que parecem andar fora de moda hoje em dia, inclusive entre crentes.

A montagem – que tem direção e adaptação de Natalia Mallo – é simples: em cena, uma mesa e uma penteadeira servem de apoio para os parcos objetos que a intérprete manuseia. Já a iluminação tem protagonismo, marcando a alternância entre momentos densos e descontraídos com recursos como o contraluz silhuetado, focos pontuais de claridade, velas e apagões dramáticos. Equilibrando seriedade e humor com segurança e sobriedade, Renata logo conquista o público com sua simpatia – a personagem deixa muitas vezes o palco para circular entre a plateia, enquanto relembra parábolas e passagens bíblicas adaptadas e modernizadas, como as histórias do Bom Samaritano, do Filho Pródigo, da Mulher Adúltera e das Bodas de Canaã. A interatividade inclui ainda a participação dos espectadores em alguns dos gestos simbólicos da atriz: acender uma vela, beber um gole de vinho e comer um pedaço de pão.

A despeito da sensibilidade e inteligência do texto e da competência da montagem, "O Evangelho..." não é uma produção arrebatadora, nem mesmo exatamente transgressora. Entretanto, essa aparente modéstia é justamente uma de suas grandes virtudes: reafirmar sem estridências e pirotecnias a obviedade de que todos temos os mesmos direitos e de que qualquer maneira de amor vale a pena talvez seja mais convincente e desconcertante do que algum panfleto incendiário. O final da peça, quando a versão trans de Jesus – o filho de Deus, nunca é demais lembrar, sempre esteve ao lado dos marginalizados e oprimidos – convoca os presentes a ficar em pé e dar as mãos aos vizinhos como em um culto, enquanto reza um original pai-nosso, desperta uma comoção genuína que transcende o caráter um tanto melodramático da cena. Em tempos nos quais o obscurantismo moralista e fariseu provoca o fechamento de exposições de arte e prega abertamente a censura à livre expressão, é a plenos pulmões que se deve dizer amém a "O Evangelho...".

bottom of page