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A MULHER FRAGMENTADA


(foto: Brayan Martins)

 

Roger Lerina

Reforçando a proeminência feminina do 24º Porto Alegre Em Cena, "Retratos" levou para o palco uma interpretação do trabalho da fotógrafa e diretora de cinema norte-americana Cindy Sherman. Conhecida por se autorretratar encarnando uma miríade de personagens – de atrizes de filme B a modelos de quadros clássicos da pintura ocidental, passando por donas de casas, prostitutas, professoras e toda sorte de mulheres –, a artista vem desconstruindo há quatro décadas com sua obra não apenas a figura feminina, mas o olhar que se lança para ela e o papel que lhe cabe na sociedade patriarcal. No espetáculo de dança-teatro apresentado na quarta-feira na Sala Álvaro Moreyra, o universo de Cindy ganhou tridimensionalidade e movimento por meio do corpo da bailarina e atriz Carolina Cony, dirigida por Cristina Moura – que divide com a intérprete a criação e a dramaturgia do trabalho.

"Retratos" começa como um quadro vivo típico da fotógrafa: sentada no chão em uma pose montada, a performer abandona sutilmente a rigidez para em pouco tempo ocupar o espaço cênico com uma extroversão de gestos, coreografias e falas. Libertada das várias gravatas que trazia atadas ao pescoço no início da apresentação, a protagonista entrega-se então a uma sucessão entrecortada de brincadeiras físicas, caretas sucessivas e danças rápidas, que dialogam ora com músicas – caso de "Modern Love" e "Life on Mars?", cantadas por David Bowie –, ora com trechos de melodias e sons diversos. Há lugar ainda para narrativas com texto, como a da jovem que se arruma para um encontro amoroso no qual será assassinada por seu parceiro.

Na parte final da obra, as gravatas retornam: símbolos da identidade masculina, os acessórios são amarrados por Carolina em torno da cabeça como mortalhas e vendas. O número culmina com uma interação lúdica: depois de se livrar novamente das tiras de tecido, a bailarina é surpreendida por punhados de roupas que são atirados em sua direção desde dois pontos da plateia. Ela devolve para o público as peças, estabelecendo um jogo divertido no qual trajes femininos e masculinos voam sobre as cabeças dos espectadores – que ajudam a cobrir Carolina com camisas, saias, blusas e ainda mais gravatas.

Embora a fragmentação, a instabilidade e a reticência pareçam fazer parte do conceito de "Retratos", como a reafirmar o caráter múltiplo e inconclusivo do que possa ser uma ideia de identidade feminina, o solo carece de mais contundência e consistência dramáticas. Boas soluções cênicas, por exemplo, ficam comprometidas por certa falta de fluidez entre as cenas – como no desfecho anticlimático, em que um vídeo mostrando Carolina dançando só com os olhos, projetado na sala escurecida, surge totalmente fora de timing e esvazia a força alegórica do esquete anterior da batalha de roupas.

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