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ANTÍGONA TAMBÉM CLAMA NO ARAGUAIA


(foto: Joel Vargas / PMPA)

 

Roger Lerina

O protagonismo feminino neste 24º Porto Alegre Em Cena – não apenas atuando, mas também concebendo e dirigindo alguns dos mais destacados espetáculos desta edição – atingiu talvez seu clímax de contundência com "Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desparecidos". A dramaturgia da montagem que lembra as 12 mulheres mortas pelas forças militares no combate à Guerrilha do Araguaia (1967 – 1974) é de Grace Passô, incensada atriz, diretora e dramaturga que pode ser vista em cena na programação do festival ainda nesta sexta-feira e no sábado, na Sala Carlos Carvalho, atuando na peça "O Líquido Tátil". Já a direção é da atriz e encenadora Georgette Fadel, que também marcou presença neste POA Em Cena com a inflamada aula-espetáculo "Afinação I". Por fim, o elenco inteiramente feminino reúne Carolina Virguez, Daniela Carmona, Sara Antunes, Fernanda Haucke e Mafalda Pequenino e Gabriela Carneiro da Cunha – igualmente idealizadora do projeto.

"Guerrilheiras" se inicia em tom leve e mesmo cômico, com a excelente atriz Carolina Virguez falando diretamente para o público que lotou a Sala Álvaro Moreyra sobre política, história e ideologia no Brasil com sagacidade e acidez – remetendo a sua performance em "Caranguejo Overdrive", produção que integrou a edição deste ano do Festival Palco Giratório Sesc/POA. Logo, porém, a narrativa crispa-se para conduzir a plateia a uma viagem ao passado e às margens do Rio Araguaia, no sul do Pará, onde dezenas de militantes de esquerda reuniram-se a fim de organizar uma resistência armada à ditadura, a qual pretendiam confrontar a partir do campo. "Guerrilheiras" destaca a participação feminina nesse movimento, reconstruída em cena a partir de pesquisas feitas pelo grupo e de relatos recolhidos de testemunhas locais que conviveram com os combatentes – as artistas fizeram uma visita preparatória de 10 dias à região.

Estendendo lonas de plástico no piso, as intérpretes evocam de maneira simples mas eficiente espaços como a terra vermelha do Norte ou a água do rio, envolvem as personagens como corpos presos, torturados ou enterrados e até recriam alegoricamente a bandeira nacional. Por outro lado, as imagens projetadas no fundo do palco, captadas pelo cineasta Eryk Rocha durante a excursão artística paraense, instauram uma poética ambientação que parece transbordar os limites da encenação e do teatro.

"Guerrilheiras" evita o didatismo na abordagem do episódio, preferindo não ir muito além de certa contextualização informativa – sem abrir mão, entretanto, de manifestar claramente empatia em relação à causa rebelde e compaixão por suas vítimas. É justo quando lamenta as mortes que "Guerrilheiras" cresce dramaticamente e oferece seus momentos mais pungentes: até hoje, apenas um dos corpos dessas mulheres foi localizado – na encenação, as outras estão deitadas embaixo da terra sob alguma árvore ou no fundo do rio, ignotas, clamando por justiça à espera de serem resgatadas por seus entes queridos. Ecoando um clamor que soa nos palcos desde "Antígona", "Guerrilheiras" alerta que, enquanto a memória permanecer desrespeitada e os mortos continuarem insepultos, a sociedade não verá suas feridas históricas cicatrizarem.

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