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DE PAI PARA FILHO


(foto: Juliana Alabarse)

 

Roger Lerina

Deveríamos ser menos reativos diante do que podemos não compreender a princípio. Em termos artísticos e culturais, o estranhamento tem que ser saudado, não estigmatizado – enfrentarmos o que nos escapa à decodificação com a curiosidade desarmada de quem desbrava uma terra incógnita torna a experiência estética mais prazerosa e enriquecedora. "Génesis 6, 6-7" opera nessa faixa de fruição tão misteriosa quanto instigante, propondo mais interrogações do que respostas ao apontar um caminho cujo trajeto individual será construído com a colaboração de cada espectador. O universo abordado pelo espetáculo da multiartista espanhola Angélica Liddell situa-se não exatamente aquém da razão, mas lida com arquétipos, imagens e percepções que nos (re)conectam com uma essência primitiva comum, capazes de comover e de se comunicar em profundidade conosco – mesmo que não decifremos totalmente os sentidos desse chamamento íntimo.

O título da montagem, derradeira parte de uma "Trilogía del Infinito", e a citação do profeta Ezequiel ("O poder de Deus", em sua origem hebraica) na abertura de "Génesis" remetem aos mitos da origem do homem na matriz bíblica. Em seguida, uma projeção gigantesca no fundo do palco mostra em detalhe uma cena estranha e perturbadora, que logo identificamos como sendo uma cirurgia de circuncisão masculina. Estamos diante do inquietante familiar, o "Unheimlich" freudiano, cuja exibição prolongada provoca uma angústia crescente.

Já a primeira cena com atores nos joga para o domínio da metafísica: um casal pintado de vermelho da cabeça aos pés, que pode ser formado por alienígenas ou entidades – ou nada disso –, discute sobre o que Deus mais temeria no homem: a matéria ou o espírito?

Essas indicações iniciais são reveladoras das antinomias que a dramaturga, atriz, poeta, diretora e produtora Angélica Liddell quer abordar em "Génesis 6, 6-7": sexo e morte, belo e grotesco, pai e filho e, especialmente, humano e divino. A partir da ira de Deus, expressa nos versículos do Velho Testamento que batizam a peça e dão notícia do arrependimento do Todo-Poderoso pela criação do ser humano, a encenadora encadeia uma série de cenas cujo simbolismo varia da clareza quase literal ao obscuro virtualmente impenetrável. Explorando as fronteiras do teatro com a performance e, em particular, com as artes visuais, "Génesis" instaura no palco um ambiente onírico singular – como se o esoterismo de Alejandro Jodorowsky visitasse um sonho surrealista concebido por David Lynch. Passagens bíblicas como o pacto abraâmico e o sacrifício de Isaac são lembrados em alegorias que se alternam com quadros poéticos e enigmáticos – caso do cavalo de oito patas suspenso de ponta-cabeça no meio do palco e das coreografias e movimentos repetitivos das atrizes irmãs Sarah e Paola Cabello Schoenmakers, que remetem à dança-teatro de Pina Bausch.

Cotejando o sublime com o abjeto, carne com alma, "Génesis 6, 6-7" circunavega a ideia de que vivemos revoltados contra essa dupla natureza herdada de quem teria nos imaginado e depois rejeitado: à imagem e semelhança de Deus, temos tanta gana por criação quanto por aniquilação. E, na visão negativa que Angélica Liddell desenvolve em seus trabalhos cênicos com a companhia Atra Bilis Teatro, o apetite por destruição está ganhando a briga.

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